A raça Beagle bombou na mídia convencionou e na Internet. Foi assunto da semana passada desde a invasão ao laboratório do Instituto Royal, em São Roque (SP). O incidente provocou uma Beaglemania, ocupou horas em reportagens na televisão, no rádio e em portais de notícia, virou capa de revistas semanais, incentivou posts diversos na mídia social e acabou valorizando a raça, que chegou a triplicar de preço em muitos mercados, em poucos dias. Uma simples busca hoje no Google com o nome da raça gera quase 25 milhões de resultados em fração de segundo.
Esta história toda, que levou jornalistas a se enveredarem pelo drama dos cachorrinhos e pelas discussões éticas em torno de pesquisas com os animais me fez recordar famosos textos da literatura brasileira, alguns relacionados a simples vira-latas que se tornaram inesquecíveis. Se você se emocionou com o drama dos Beagles, aqui vai uma listinha com sugestão de leitura de contos, crônicas e trechos de romance com algumas histórias emocionantes sobre cachorros. Para mim, uma das melhores é o drama de Baleia, que integra o romance "Vida Secas", de Graciliano Ramos, transformado em filme pela genialidade do cineasta Nelson Pereira dos Santos, em 1963 (foto acima):
Amigo Cachorro, de Belmiro Braga
Mila e Rua Mila, de Carlos Heitor Cony
Tentação, de Clarice Lispector
Perigo, de Domingos Pellegrini
Baleia, de Graciliano Ramos
Pingo-de-ouro, de Guimarães Rosa
Veludo, de Luiz Guimarães
Biruta, de Lygia Fagundes Telles
Plutão, de Olavo Bilac
Madrugada, de Orígenes Lessa
Bruno Lichtenstein, de Rubem Braga
Se você conhece algum outro texto e quiser colaborar com a lista anterior, é só fazer o comentário abaixo deste post.
Em respeito aos direitos autorais, não posso reproduzir a maioria aqui, mas deixo registrado o poema Veludo, de Luiz Guimarães, já em domínio público.
Eu tive um cão. Chamava-se Veludo:
Magro, asqueroso, revoltante, imundo,
Para dizer numa palavra tudo
Foi o mais feio cão que houve no mundo.
Recebi-o das mãos dum camarada.
Na hora da partida, o cão gemendo
Não me queria acompanhar por nada:
Enfim − mau grado seu − o vim trazendo.
O meu amigo cabisbaixo, mudo,
Olhava-o ... o sol nas ondas se abismava....
«Adeus!» − me disse,− e ao afagar Veludo
Nos olhos seus o pranto borbulhava.
«Trata-o bem. Verás como rasteiro
Te indicarás os mais sutis perigos;
Adeus! E que este amigo verdadeiro
Te console no mundo ermo de amigos.»
Veludo a custo habituou-se à vida
Que o destino de novo lhe escolhera;
Sua rugosa pálpebra sentida
Chorava o antigo dono que perdera.
Nas longas noites de luar brilhante,
Febril, convulso, trêmulo, agitado
A sua cauda − caminhava errante
A luz da lua − tristemente uivando
Toussenel: Figuier e a lista imensa
Dos modernos zoológicos doutores
Dizem que o cão é um animal que pensa:
Talvez tenham razão estes senhores.
Lembro-me ainda. Trouxe-me o correio,
Cinco meses depois, do meu amigo
Um envelope fartamente cheio:
Era uma carta. Carta! era um artigo
Contendo a narração miúda e exata
Da travessia. Dava-me importantes
Notícias do Brasil e de La Plata,
Falava em rios, árvores gigantes:
Gabava o steamer que o levou; dizia
Que ia tentar inúmeras empresas:
Contava-me também que a bordo havia
Mulheres joviais − todas francesas.
Assombrava-me muito da ligeira
Moralidade que encontrou a bordo:
Citava o caso d’uma passageira...
Mil coisas mais de que me não recordo.
Finalmente, por baixo disso tudo
Em nota breve do melhor cursivo
Recomendava o pobre do Veludo
Pedindo a Deus que o conservasse vivo.
Enquanto eu lia, o cão tranquilo e atento
Me contemplava, e − creia que é verdade,
Vi, comovido, vi nesse momento
Seus olhos gotejarem de saudade.
Depois lambeu-me as mãos humildemente,
Estendeu-se a meus pés silencioso
Movendo a cauda, − e adormeceu contente
Farto d’um puro e satisfeito gozo.
Passou-se o tempo. Finalmente um dia
Vi-me livre d’aquele companheiro;
Para nada Veludo me servia,
Dei-o à mulher d’um velho carvoeiro.
E respirei! «Graças a Deus! Já posso»
Dizia eu «viver neste bom mundo
Sem ter que dar diariamente um osso
A um bicho vil, a um feio cão imundo».
Gosto dos animais, porém prefiro
A essa raça baixa e aduladora
Um alazão inglês, de sela ou tiro,
Ou uma gata branca sismadora.
Mal respirei, porém! Quando dormia
E a negra noite amortalhava tudo
Senti que à minha porta alguém batia:
Fui ver quem era. Abri. Era Veludo.
Saltou-me às mãos, lambeu-me os pés ganindo,
Farejou toda a casa satisfeito;
E − de cansado − foi rolar dormindo
Como uma pedra, junto do meu leito.
Praguejei furioso. Era execrável
Suportar esse hóspede importuno
Que me seguia como o miserável
Ladrão, ou como um pérfido gatuno.
E resolvi-me enfim. Certo, é custoso
Dizê-lo em alta voz e confessá-lo
Para livrar-me desse cão leproso
Havia um meio só: era matá-lo
Zunia a asa fúnebre dos ventos;
Ao longe o mar na solidão gemendo
Arrebentava em uivos e lamentos...
De instante em instante ia o tufão crescendo.
Chamei Veludo; ele seguia-me. Entanto
A fremente borrasca me arrancava
Dos frios ombros o revolto manto
E a chuva meus cabelos fustigava.
Despertei um barqueiro. Contra o vento,
Contra as ondas coléricas vogamos;
Dava-me força o torvo pensamento:
Peguei num remo − e com furor remamos
Veludo à proa olhava-me choroso
Como o cordeiro no final momento,
Embora! Era fatal! Era forçoso
Livrar-me enfim desse animal nojento.
No largo mar ergui-o nos meus braços
E arremessei-o às ondas de repente...
Ele moveu gemendo os membros lassos
Lutando contra a morte. Era pungente.
Voltei à terra − entrei em casa. O vento
Zunia sempre na amplidão profundo.
E pareceu-me ouvir o atroz lamento
De Veludo nas ondas moribundo.
Mas ao despir dos ombros meus o manto
Notei − oh grande dor! − haver perdido
Uma relíquia que eu prezava tanto!
Era um cordão de prata: − eu tinha-o unido
Contra o meu coração constantemente
E o conservava no maior recato
Pois minha mãe me dera essa corrente
E, suspenso à corrente, o seu retrato.
Certo caíra além no mar profundo,
No eterno abismo que devora tudo;
E foi o cão, foi esse cão imundo
A causa do meu mal! Ah, se Veludo
Duas vidas tivera − duas vidas
Eu arrancaria àquela besta morta
E àquelas vis entranhas corrompidas.
Nisto senti uivar à minha porta.
Corri, − abri... Era Veludo! Arfava:
Estendeu-se a meus pés, − e docemente
Deixou cair da boca que espumava
A medalha suspensa da corrente.
Fôra crível, oh Deus? − Ajoelhado
Junto do cão − estupefato, absorto,
Palpei-lhe o corpo: estava enregelado;
Sacudi-o, chamei-o! Estava morto.
Crédito da foto: Blog Ler Antes de Morrer
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